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Direitos em Cena | O homem da solidariedade radical

Documentário registra o cotidiano do padre Júlio Lancelotti, batalhador dos direitos da população de rua

Matheus Trunk, especial para a Ponte Jornalismo
#DESIGUALDADE19 de jul. de 236 min de leitura
Curta-metragem sobre Júlio Lancelotti, pode ser assistido no Youtube. Foto: Reprodução
Matheus Trunk, especial para a Ponte Jornalismo19 de jul. de 236 min de leitura

Um menino de dezessete anos é vítima de uma ação policial. O garoto é trancado dentro de um barraco e torturado pelos agentes de maneira impiedosa. Um dos guardas estava com tanta raiva que utiliza um martelo. Dias depois, um padre presta uma celebração eucarística pelo sétimo dia de morte do jovem. O religioso faz um discurso combativo: “E assim fizeram com o Leandro. Nós não podemos aceitar que isso seja natural, normal e que Deus quis. Deus não quis não. Quem quis foram os que usam da violência e das armas para matar, para ferir”, diz o clérigo de maneira veemente para familiares, amigos e colegas do jovem. É porque este não é um religioso convencional. Trata-se do padre Júlio César Lancelotti, responsável pela Pastoral da Rua da Arquidiocese de São Paulo. O discurso do religioso é um dos momentos mais pungentes do documentário “Júlio Lancelotti, o padre mais anarquista do Brasil”, do fotógrafo e videorrepórter Caio Castor.

Em apenas 21 minutos de duração, podemos ver no curta-metragem o cotidiano de um dos homens mais atuantes na luta pelos direitos humanos no Brasil. Caio Castor conheceu o eclesiástico em 2010, durante uma ocupação no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo. Desde então, percebeu o quanto aquele homem de batina era diferente dos demais nomes do clero. “Ele tem uma construção coletiva tanto na convivência da população mais carente quanto no enfrentamento das autoridades por meio de ações direta. Isso marca muito”, analisa Castor. Desde o início, o realizador foi juntando momentos diferentes que viveu ao lado do religioso. Para o diretor, o essencial em seu filme era mostrar os dois lados do padre: o teórico e a prática. “O importante é a sua luta, a prática dele, o que ele está defendendo e as suas reflexões.”

São sete horas da manhã. Cerca de 600 pessoas já esperam o padre. São homens e mulheres aguardando o café da manhã no Centro Comunitário São Martinho de Lima. Uma padaria comunitária auxilia na elaboração dos alimentos. Dois ajudantes dão seu depoimento contando como conheceram o religioso. O padre vai com seu carrinho dando comida para os mais humildes. O filme mostra o atendimento jurídico, o barbeiro, a documentação, curso de línguas e tudo que a pastoral oferece para a população carente. Em determinado momento, o padre Júlio Lancelloti olha para a câmera e presta um depoimento aguçado sobre a vida na maior cidade do país: “nós temos que assumir que a nossa cidade tem um apartheid. Uma divisão social, um muro de separação em que os mais pobres são submetidos”.

Júlio Lancelotti, o padre mais anarquista do Brasil também mostra a distribuição de água e pão para os moradores de rua e a busca de moradia por algumas famílias vivendo numa ocupação. Cerca de 60 pessoas vão para um prédio viabilizado pelo padre com outras organizações. São algumas alternativas assim que despertam o sentimento de humanidade no espectador. Caio Castor explica que não contou com uma equipe técnica para fazer seu projeto. Ele fez tudo praticamente sozinho: roteiro, câmera e montagem. O realizador acompanhou o religioso e o seu entorno durante dois meses. “A minha voz no audiovisual é outra, é do vídeo independente, popular. Claro que eu busco que o meu trabalho circule, mas eu acho que com essa linguagem política não cabe em todos os lugares.”

Caio Castor confessa que a ideia de associar o religioso com o anarquismo foi uma espécie de provocação. “Mas eu não falo que ele seja anarquista porque ele é um padre”, explica, rindo. “Mas a ideia era buscar esse lance da vida prática dele, do dia-a-dia, dos mutirões e da defesa das minorias, seja dos indígenas ou da ‘Cracolândia’. Ele sempre está na linha de frente”. O produtor trabalha há anos com videojornalismo e cinema, oferecendo matérias para diversos órgãos de imprensa de direitos humanos. “Sempre estou contando histórias”, diz. “Comecei a fazer [o documentário] porque eu sabia que algum veículo poderia querer, mas nenhum quis publicar. Então, eu resolvi publicar no meu canal mesmo”. A repercussão tem sido razoavelmente grande. Disponível desde março desse ano, Júlio Lancelotti, o padre mais anarquista do Brasil já teve mais de 1.500 visualizações no YouTube. A maioria dos comentários é positiva. Mas também existiram outros que não gostaram da obra. “O discurso dele incomoda a direita. Mesmo assim, muita gente que se diz de esquerda não conhece o trabalho dele a fundo”, explica Castor. O diretor vai mais longe no seu raciocínio: “Quem se diz de esquerda precisa passar uma semana no mínimo com o padre Júlio para aprender o que é a solidariedade na prática”.

Um aspecto bastante chamativo do trabalho são as músicas executadas pelos próprios moradores de rua. Um dos moradores toca piano, outro flauta e um terceiro violino. “Esse senhor tocou muitos anos e foi para a rua.” A Pastoral realizou uma vaquinha para conseguir dar um instrumento para ele. “Primeiro veio a rabeca e depois a haste. São histórias tão duras, tão pesadas, que na música o espectador pode conseguir vislumbrar alguma poesia num cotidiano desses”.

Caio Castor tem mais dois projetos para o audiovisual. Uma sobre a nova direita, que ele acompanhou desde 2013 filmando pessoas anônimas que entraram de cabeça no bolsonarismo. “Foram dez anos filmando todo esse pessoal envolvido para discutir a emergência dessa nova extrema direita”. Esse primeiro se chama provisoriamente Verdes e Amarelos. Outro é sobre a Favela do Moinho, um local de intensa repressão policial. O diretor chegou a morar lá durante um tempo e teve a chance de registrar como a juventude desse espaço é inibida pelas autoridades policiais. “Eles chegam dando pontapé nos barracos e 99% das vezes eles não estão preocupados em resolver o problema”, denuncia.

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O realizador destaca que seu documentário surgiu quase como um vídeo institucional do trabalho da Pastoral da Rua. Sua ideia original era dialogar com espectadores que acompanhassem o trabalho do religioso, mas que não necessariamente sejam politizados. “Meu objetivo final é que cada um olhe para sua vida e veja se está buscando uma sociedade mais justa como nós queremos. Quem assistir o vídeo irá questionar a sua prática”, defende o diretor.

Júlio Lancelotti, o padre mais anarquista do Brasil
Direção: Caio Castor
Brasil, 2023
Duração: 21 minutos

A coluna “Direitos em Cena” é o espaço para o cinema brasileiro contemporâneo na Ponte: seus filmes, seus diretores, seus personagens. Busca ampliar o espaço de narrativas cinematográficas que muitas vezes não recebem atenção da grande mídia, sempre em relação com os direitos humanos. A coluna é escrita por Matheus Trunk, jornalista, escritor, roteirista e mestre em comunicação audiovisual, autor dos livros O Coringa do Cinema (Giostri, 2013), biografia do cineasta Virgílio Roveda, e Dossiê Boca: Personagens e histórias do cinema paulista (Giostri, 2014).

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